quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Igreja e Revelações Particulares


Revelações Particulares

Nós todos, desde pequeninos, aprendemos no 3o. Catecismo de S. Pio X que a Revelação Pública e Oficial, à qual devemos Fé Teológica, se encerrou com a morte do último apóstolo.
Mas há Revelações Particulares.
Não são oficiais. Damo-lhes, livremente, fé humana.
São, na maioria, inspirações divinas; às vezes, precognições.
As inspirações divinas têm a mesma mecânica que as inspirações humanas no campo da matemática ou da poesia. Porque a Graça é uma perfeição da natureza, que se comporta como ato seu, sujeitando-se às leis da substância em que é recebido. Como se processa, pois o caso da criação mental? A imaginação criadora é vivificada pela inteligência portadora de uma inspiração. Esta inspiração reorganiza, de modo original e atualizado, os dados da Revelação Pública contidos na sacratíssima Bíblia e na Tradição Apostólica.
A inspiração divina é produto dos Dons do Espírito Santo e dos Carismas de que cada um de nós está investido, por obra e graça do santo batismo. Daí que, todos e cada um de nós, temos nossas comunicações de Deus, nossas inspirações do Espírito Santo, nossas intuições acertadas, nossas revelações particulares. Estas experiências do Espírito Santo, que são em nós o princípio da vida da graça, brotam em nós, segundo S. Paulo, da inabitação divina que santifica o coração, a mente e o ser todo, em Cristo.
É uma apresentação genial do Depósito da Revelação Pública construída no cérebro de um cristão geralmente fervoroso e santo. Reveste-se ela, assim, de uma unção viva e de uma eficácia nova.
Manifestação do Espírito, energias e dinamismos de santidade, os carismas são expressões divinas em que Deus fala em nós. Este profetismo, de que fala S. Paulo (I Cor 14), como aperfeiçoamento do profetismo do Velho Testamento é um carisma, função eclesial permanente.
A tradição da Igreja, que conserva o Depósito da Revelação através dos séculos, é sacralizada e vivificada por este carisma profético.
De fato, os Santos Padres, os Doutores da Igreja, são os portadores oficiais da Doutrina Católica. Numa tese de doutorado, citar a convergência das opiniões dos Santos Padres ou dos Doutores da Igreja é provar a tese. Santo Agostinho e São Tomás, São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus, Santo Afonso Maria de Ligório ou Santa Catarina de Sena, quando se pronunciam, nós os ouvimos como manifestações do Espírito, como expressões divinas da Verdade Revelada.

Que há contra Revelações Particulares?

Segundo S. Paulo (I Cor 14), a efervescência emocional dos carismas é algo inquietante. O carismático pode amaldiçoar a Cristo. As manifestações dos cristãos de Corinto, agitadas e clamorosas, lembravam a mística pagã das sibilas e dos áugures, das pitonisas e dos êxtases dionisíacos. Temos, pois, que a Revelação Particular pode ser efeito de carisma diabólico, como no caso dos falsos profetas de que fala a Bíblia. Uma 'Revelação' pode ser de origem natural, como uma inspiração genial no campo religioso ou profano. Pode ser de origem diabólica, estabelecendo a cisão e a anarquia, contrariando o Depósito da Fé. E pode ser de origem divina, quando a graça, participação da natureza divina, atua dentro dos esquemas operacionais da mente a que nós chamamos Dons do Espírito Santo.
As Revelações Particulares entram em desprestígio porque elas aparecem como raiz de todas as heresias. O misticismo falso marca os gnósticos e outros hereges a que se refere S. João no Apocalipse e na sua 1a. Carta, Cap. II vers. 18 e seguintes.
As inspirações particulares geraram os hussitas, os quietistas e outros que se separaram da comum doutrina da Igreja. O Protestantismo veio na atmosfera dos nominalistas e da interpretação privada da santa Bíblia. A heterodoxia é sempre fruto de um subjetivismo exagerado, ou de um individualismo que se opõe à Tradição Apostólica e à Sociedade instituída por Cristo, a Igreja fundada em Pedro (Mt 16).
O Livre Exame da Bíblia, sem a Tradição e sem a autoridade competente  e oficial para interpretá-la, é o individualismo doentio e soberbo que criou o Protestantismo. Cristo fundou uma Sociedade, não um individualismo autônomo.
Entre as leis da personalização, temos duas complementares: a lei da Individualização e a lei da Socialização. Elas são dominantes em fases alternadas. Na fase da Individualização (três anos, quinze anos, dezoito anos), todos nós temos uma crise de autonomia que rejeita a sociedade instituída e as leis vigentes. Nestas quadras somos contestadores e protestamos contra o ambiente autoritário e as vigências comunitárias. Sentimos antipatia pelas fórmulas de fé, pelo esquema de valores em voga. Na fase da Socialização ressurge o senso comunitário. O anormal continua individualista.
Revelações Particulares em oposição ou contestação ao comum e ao comunitário, apresentam antíteses. É a heresia contra o Dogma.
O Particularismo das Revelações Privadas, contra a Tradição Pública e o Depósito estabelecido e conservado pela Comunidade cristã, apresenta-se como um perigo de cisma, de insubmissão e de subversão da Doutrina aprovada.
Fatos significativos
Por isto se explica o desprestígio das Revelações Particulares no meio do clero culto, afeito ao estudo das fontes da Revelação Pública.
Quando diretor dos Congregados Marianos, realizei, em 1947, um Congresso Nacional Fatimense. Ao apresentar o álbum do Congresso com os temas das conferências ao Núncio Apostólico de então, recebi dele a seguinte reprimenda:
"Não apele para Revelações Particulares, mas para os Santos Padres da Igreja."
Achei a atitude do Sr. Núncio muito normal.
Como jesuíta, em toda minha formação, Noviciado, Letras Clássicas, Filosofia e Teologia, nunca meus mestres citaram uma Revelação Particular. Argumentos de razão e de fé teologal eram as bases em que se sedimentavam nossas convicções.
Numa novena para a festa do Sagrado Coração, em que ouvíamos alocuções com os pontos para a meditação do dia seguinte, o Mestre dos Noviços não citou uma só vez Santa Margarida Maria.
Nos nossos dias
Isto desgostou um colega meu que, deixando posteriormente a Companhia de Jesus, veio a ser ministro da Justiça de um dos nossos governos, há longos anos.
Apoiado em revelações particulares, Clemente Domingues, de Palmar de Tróia, Sevilha, se fez ordenar e sagrar bispo contra as leis vigentes. Sagrou dezenas de bispos, nomeou cardeais e se instituiu papa, excomungando João Paulo II com todos os seus seguidores. Quem lê suas comunicações e decretos tem a impressão de um megalômano e paranóico.

A Sabedoria Cristã

Estes argumentos todos comovem fortemente os intelectuais. Os ascetas, isto é, os que têm o predomínio do conceitual sobre o conhecimento concreto, que vivem do raciocínio e não possuem o regime intuitivo em pleno vigor, estes tipos, digo, desprezam todas as Revelações Particulares e os fenômenos místicos como fantasmagoria de mentalidades doentias. Não acontece assim com o varão maduro em Cristo. Qualquer pessoa que chegou à maturidade, isto é, à síntese perfeita de todas as tendências, possui a harmonia e a convergência dos hábitos operativos contrastantes ou contrários. É por isso que Aristóteles afirma que a virtude está no meio, entre dois extremos viciosos.
Assim, é igualmente defeituoso acreditar demais nas Revelações Particulares como não acreditar suficientemente nelas.
As intuições são fontes de conhecimentos, como as conceituações categoriais o são também.
O saber autêntico e veraz acata a verdade, venha donde vier. Não é que a formação clerical seja errada. Mas é necessário uma complementação que nos ponha em contato real com a fonte de conhecimentos pré-categoriais, que são os sete Dons do Espírito Santo.
Quantos livros nascidos de uma espontaneidade criadora, que relatam as experiências íntimas de vivências ricas e profundas que não se moldam pelo raciocínio abstrato! O cérebro geométrico entende bem no campo da quantidade; mas nada compreende na área da qualidade e do psiquismo profundo.
Os diários íntimos de personalidades canonizadas, ou não, trazem uma riqueza imensa de valores humanos. Seria fruto de uma inteligência fechada para a verdade não colher as jóias destas minas de valores humanos.
A inspiração escriturística não prescinde do vocabulário e do linguajar do hagiógrafo; mas Deus não permite um erro na interpretação da mensagem divina, quando se trata da comunicação oficial e pública.
Com a inspiração mística e particular não sucede a mesma coisa. Deus se comunica no "fundo da alma", como se expressam os experimentados nestes fenômenos, os místicos. Isto significa que Deus nos fala na área anterior ao campo imaginativo, idiomático ou conceitual. Daí que o inspirado deverá traduzir para o idioma, para as conceituações e para as imagens o conteúdo da mensagem. Quem está afeito a traduzir documentos para outro idioma, experimenta a dificuldade na tarefa, porque as palavras não se correspondem, inteiramente, nas diversas línguas.
Critérios de veracidade
Daí que o depositário de uma experiência mística tenha a sensação de S. Paulo, que, na impossibilidade de se exprimir, fala de palavras inefáveis e fatos inenarráveis. Na magnífica galeria dos portadores de Revelações Particulares das "palavras de Jesus" notamos deficiências de expressão no linguajar peculiar de cada um. Mesmo inexatidões. Numa filmagem colorida e sonora de longa-metragem, veiculando experiências interessantes para o ser humano, podemos perdoar as deficiências técnicas e colher aquilo que é útil (I Tess 5,19).
Para discernirmos se os fenômenos místicos são de origem meramente humana, se de origem doentia, se de origem diabólica ou de origem divina, quais as normas que deveríamos usar?
As manifestações de origem demoníaca são marcadas pela soberba. As de origem doentia, pela falta de objetividade nos conhecimentos, pela deficiência da oblatividade e sociabilidade nos afetos e pela falta do senso do real e do realizável.
As de origem divina são organizações originais, belas ou harmoniosas do "Depósito da Revelação". Tudo o que não coincide com este Depósito é suspeito de interferências indébitas do próprio psiquismo, que se costuma chamar de "Coeficiente de Refração Pessoal".
A inspiração homérica, virgiliana ou camoniana trouxe para o equilíbrio das nossas faculdades uma certa distinção humana.
Cícero ou Demóstenes acarretam para a alma cristã certa nobreza, certa dignidade, que nos ajudam à vida divina da graça.
Muito mais os escritos dos místicos de virtude acrisolada, que nos apresentam as vivências evangélicas com calor e colorido imensamente humanos, são dignos do nosso acolhimento como pontos de meditação e como vivências divinas que merecem ser assimiladas.
Do livro Psicologia da Graça
Pe. Afonso Rodrigues, S.J. (Ed. Loyola)

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