SÃO PAULO, quinta-feira, 22 de setembro de 2011 (ZENIT.org)
– Apresentamos o comentário à Liturgia da Palavra do 26º Domingo do
Tempo Comum – Ez 18, 25-28; Sl 24(25), 4bc-5.6-7.8-9; Fl 2, 1-11; Mt 21,
28-32 – redigido pelo professor Gabriel Frade. Natural de
Itaquaquecetuba (São Paulo), Gabriel Frade é leigo, casado e pai de três
filhos. Graduado em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana
(Roma), possui Mestrado em Liturgia pela Pontifícia Faculdade de
Teologia Nossa Senhora D’Assunção (São Paulo). Atualmente é professor de
Liturgia e Sacramentos no Mosteiro de São Bento (São Paulo) e na UNISAL
– Campus Pio XI. É tradutor e autor de livros e artigos na área
litúrgica.
* * *
26º Domingo do Tempo Comum – Ano A
Leituras: Ez 18, 25-28; Sl 24(25), 4bc-5.6-7.8-9; Fl 2, 1-11; Mt 21, 28-32
“Em verdade vos digo que os publicanos e as prostitutas vos precederão no Reino de Deus” (Mt 21, 31)
A liturgia deste 26º domingo do Tempo Comum continua nos apresentando
de modo particular a misericórdia e o amor de Deus pelo homem. A
primeira leitura, tirada do livro do profeta Ezequiel, apresenta a
palavra de Deus comunicada por meio do profeta e dirigida ao povo de
Deus que se encontra na amarga experiência do exílio babilônico.
Diante do sofrimento brota uma acusação: “O modo de agir do Senhor não é justo!”
(Ez 18, 25). Israel apresenta-se como imagem da condição humana, a
qual, diante de um sofrimento aparentemente injusto, procura pleitear
sempre a justiça num plano distributivo, isto é, restaurar aquilo que é
devido conforme a necessidade de cada um. Certamente, do ponto de vista
humano, trata-se de um princípio justo.
Afinal, em sua concepção, Israel tinha motivos para se lamentar: ele
era o povo escolhido; havia construído um Templo no qual dia após dia se
esmerava em prestar um culto ao Deus verdadeiro. Por que Deus fora tão
injusto? Por que Israel estava no exílio?
Israel deve fazer um caminho para compreender que Deus não fora
injusto, ele não abandonara jamais o seu povo; quando muito, o que houve
foi justamente o contrário. De fato, já o profeta Jeremias alertara que
não bastava Israel possuir um Templo e ter uma conduta religiosa
expressa através de culto suntuoso (cf. Jr 7, 4ss). Deus deixava claro
através desse profeta que era necessário que o Templo e o culto também
se refletissem diretamente nas atitudes concretas do povo, especialmente
para com os mais fracos da sociedade.
Fica evidente que Israel conheceu sua ruína, em boa parte, porque
caiu na tentação dos caminhos fáceis: fechou-se numa liturgia
ritualista; reduziu o Templo a um mero fetiche, a um objeto mágico, e o
culto que deveria ser a expressão da aliança com Deus, tonou-se apenas
um culto de palavras vazias (“Este povo me honra com os lábios...” Is 29,13).
Israel ao proceder de forma artificial acabara por enveredar pelos
caminhos dos injustos e dos ímpios (cf. Sl 1). Quantas vezes não estamos
também nós nesse caminho? Quantas vezes ao rezar na liturgia o
Pai-nosso, por exemplo, as palavras são pronunciadas por nossa boca
apenas como uma fórmula vazia de sentido. Quantas vezes invertemos em
nosso coração a petição “seja feita a vossa vontade” ao pensarmos em nosso íntimo: “Sim, mas na verdade, ó Deus, o que eu quero mesmo é que o Senhor faça a minha vontade!” (cf. Lc 22, 42)?
Quantas vezes não vivemos num divórcio prático entre celebração e
vida? Os profetas, de modo geral, dentre tantas denúncias feitas dos
desvios do povo em relação a Deus, evidenciaram o fato das grandes
liturgias de Israel terem se esvaziado de conteúdo (cf. Os 6,6) e serem
realizadas sem aquilo que realmente importava: o amor a Deus e o amor ao
próximo.
Mais uma vez queremos lembrar aqui a afirmação profética do magistério da Igreja: “o
gesto litúrgico não é autêntico se não implica um compromisso de
caridade, um esforço sempre renovado por ter os sentimentos de Cristo
Jesus, e para uma contínua conversão”. (Medellín, 9, 3).
Por isso mesmo Deus coloca a questão sob outra perspectiva: “Não será antes o vosso modo de proceder que não está certo?... ao fazer o mal, é em virtude do mal que [o ímpio] morre...” (v. 25b-26).
Parece que assim como Israel, também nós temos que aprender a praticar aquilo que realmente importa para Deus: o caminho do direito e da justiça seja para com o próximo, seja para com Deus (v. 28). Para aprender esse caminho, é preciso um toque de graça da parte de Deus: “Tudo
o que fizeste conosco, com razão o fizestes, pois pecamos contra vós e
não obedecemos aos vossos mandamentos. Mas honrai o vosso nome,
tratando-nos segundo vossa misericórdia” (Antífona de entrada).
Por isso o salmista apresenta-nos a sua súplica que se torna pedido de toda a comunidade: “Mostra-me teus caminhos, Senhor, ensina-me tuas veredas” (Salmo responsorial; tradução da Bíblia de Jerusalém).
Mais uma vez nos deparamos com a metáfora do “caminho” para indicar a
relação filial entre Deus e o seu povo. Um caminho pontilhado de altos e
baixos, de desvios e de afastamentos de Deus; mas também um caminho de
gratuidade, de perdão e de misericórdia por parte de um Deus que desce
(é o tema da segunda leitura) ao encontro do homem para elevá-lo até si:
“Ó Deus, que mostrais vosso poder sobretudo no perdão e na
misericórdia, derramai sempre em nós a vossa graça, para que, caminhando
ao encontro das vossas promessas, alcancemos os bens que nos reservais” (Oração do dia).
Esse caminho de encontro é garantido pelo bem por excelência que Deus
nos reservou: o Espírito, concedido por meio de seu Filho (cf. Jo 14;
15; 16) e que habita em todo batizado.
No Evangelho, Jesus propõe aos judeus a parábola dos dois filhos
chamados a trabalhar na vinha. A imagem usada por Jesus é uma referência
à situação de Israel e da Igreja, o novo Israel.
Na parábola Jesus indaga seus ouvintes sobre qual dos dois irmãos
havia realizado a vontade paterna: aquele que declinara o convite do Pai
– situação de envergonhar um Pai e totalmente reprovável no filho,
especialmente no contexto Palestinense –, mas que ao final, tomado pelo
remorso fora trabalhar, ou o outro, que havia concordado com o pai
verbalmente, evitando problemas e mantendo uma “fachada” de obediência,
mas que de fato decide não ir trabalhar. Todos responderam de modo
unânime: o filho que, apesar de ter se pronunciado negativamente e fora
até a vinha para o trabalho, este sim, cumprira a vontade do pai. É
muito interessante esta imagem da parábola.
Como se sabe, são as ações que revelam o mais íntimo de nosso ser e
não as palavras. É o que Jesus, de certo modo, também nos mostra neste
relato.
Aqui vale a pena um pequeno parêntese: curiosamente estamos nos
aproximando das eleições das esferas governamentais. Seria muito
interessante utilizar este método ofertado pelo evangelho no momento de
escolhermos nossos candidatos: já vimos que quando se trata de
discursos, de palavras, os nossos políticos, em sua grande maioria, são
imbatíveis. Para separar o joio do trigo é preciso olhar não para os
belos discursos, mas para a prática de vida de nossos candidatos e
escolher aqueles que apresentaram a maior coerência entre a fala e a
ação concreta visando o bem comum.
Em se tratando da revelação do ser, Cristo revelou-se como caminho
que conduz ao Pai (Cf. Jo 14, 6) não só em palavras, mas com a própria
vida, de fato. Esse aspecto da total revelação de Deus em Jesus na sua
auto-doação ao Pai nos é mostrado de modo admirável pelo apóstolo São
Paulo na segunda leitura. De fato, Ele o Cristo Senhor que “estando na forma de Deus (tradução da Bíblia de Jerusalém) não
usou de seu direito de ser tratado como um deus, mas se despojou,
tomando a forma de escravo. Tornando-se semelhante aos homens...
abaixou-se, tornando-se obediente até a morte” (Fl 2, 6-8).
“Nascendo na condição humana, renovou inteiramente a humanidade.
Sofrendo a paixão, apagou nossos pecados. Ressurgindo, glorioso, da
morte, trouxe-nos a vida eterna. Subindo, triunfante, ao céu, abriu-nos
as portas da eternidade” (Prefácio IV dos Domingos do Tempo Comum).
É um grande mistério, pois abaixando-se, o Cristo eleva-se ao céu abrindo “para nós a fonte de toda bênção” (cf. Oração sobre as oferendas).
Em Cristo, Deus desceu das alturas e assumiu a baixeza de nossa
condição humana. Em tudo semelhante a nós, fora o pecado, o Cristo
elevou nossa humanidade à glória da Santíssima Trindade abrindo-nos o
caminho para a divindade: “Nisto conhecemos o amor de Deus: Jesus deu sua vida por nós; por isso nós também devemos dar a nossa vida pelos irmãos” (antífona da comunhão)
“Em verdade vos digo: os publicanos e as prostitutas vos
precederão no Reino de Deus. Pois João veio a vós, num caminho de
justiça e não crestes nele”. (Mt 21, 31-32).
Jesus proclama a grande misericórdia de Deus. Em todo seu ministério
Jesus se fez próximo àqueles que viviam fora dos padrões religiosos da
sociedade judaica (cf. Mt 11, 19; Lc 7, 34; Mc 2, 16).
Como terão soado essas palavras de Jesus aos ouvidos dos judeus?
Certamente não terão sido acolhidas com tranquilidade, pois Jesus foi
simplesmente “politicamente incorreto” dentro das convenções religiosas
judaicas de então – e, quem sabe, talvez também em relação às nossas
convenções de hoje...
Jesus com suas palavras proclama que Deus não olha para a religião
ritualista, mas sim para o essencial, para o coração; afinal, - como
diria o Pequeno Príncipe, personagem da obra magistral de Antoine de Saint-Exupéry - “só se vê bem com o coração”!
Jesus certamente não se opõe aos ritos, nem à religião, mas ele chama a atenção para o que é central: “Ai
de vós, escribas e fariseus hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, do
endro e do cominho e desprezais os preceitos mais importantes da lei: a
justiça, a misericórdia, a fidelidade. Eis o que era preciso praticar em
primeiro lugar, sem contudo deixar o restante” (Mt 23, 23).
Jesus também não quer dizer que Deus ama o pecado cometido pelas prostitutas e pelos publicanos, afinal o salário do pecado é morte
(cf. Rm 6, 23). Jesus louva, ao invés, o fato destes pecadores
arrependidos terem reconhecido a presença de um Deus misericordioso em
suas vidas, coisa que os sacerdotes e doutores judeus, em sua pretensa
sabedoria e santidade “conquistada” à força do exercício de ritos não
conseguiram reconhecer.
Diante deste Evangelho é possível que nos perguntemos: onde hoje está
minha vida refletida? Nos pecadores arrependidos e desejosos de
experimentar o Deus do perdão e do amor? Ou será que minha vida está
refletida numa conduta religiosa que crê conquistar a simpatia de Deus
apenas com o esforço pessoal?
“Senhor, eu não sou digno (a) de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo (a)” (Rito da comunhão).
Embora todos sejamos indignos de tal graça, o Senhor olhou para nossa
sorte e nos associou ao seu mistério de morte e vida, renovando nossa
vida e tornando-nos homens e mulheres novos, dignos: “Ó Deus, que a
comunhão nesta Eucaristia renove a nossa vida para que, participando da
paixão de Cristo neste mistério, e anunciando a sua morte, sejamos
herdeiros da sua glória” (Oração depois da comunhão).
Que nesta liturgia, ao celebrarmos o mistério, possamos todos
experimentar o amor e a misericórdia de Deus para conosco e, desse modo,
possamos igualmente corresponder a esse amor e essa misericórdia
praticando a justiça e a retidão para com o próximo.
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